As Políticas Higienistas e sua relação com a derrubada do Morro do Castelo no Rio de Janeiro
- Ìotopía
- 24 de out. de 2020
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Por Paula Manfredini
O presente artigo é um breve resumo de algumas discussões que desenvolvi em minha pesquisa de monografia, na qual buscou-se analisar trechos retirados do Jornal do Brasil entre os anos de 1920 e 1922, levando em consideração suas condições de publicação, a fim de compreender e evidenciar os argumentos oficiais utilizados para justificar a derrubada do Morro do Castelo, berço da capital fluminense. Considerando o contexto nacional e internacional do período, busca-se também analisar a influência das políticas higienistas nos argumentos legitimadores do desmonte do morro, visto que a maioria dos trechos selecionados versam acerca das condições insalubres em que esse se encontrava.
O Morro do Castelo – demolido no ano de 1922, durante a Primeira República do Brasil – foi o local de fundação da cidade do Rio de Janeiro. Considerado um local insalubre, reduto da pobreza e da imoralidade, sua derrubada foi incentivada e legitimada pelo discurso médico-científico da época, que, partidário da Medicina Social, pretendia a inserção do Brasil nos moldes europeus de modernidade e progresso – os quais condenavam as condições em que o Castelo se encontrava. Adotando a relação entre higienismo e urbanismo como escopo principal deste artigo, revisitando a cidade do Rio de Janeiro, pretende-se responder à seguinte problemática: qual foi a influência das políticas higienistas, pautadas na melhoria das condições de saneamento, nos argumentos legitimadores da derrubada do Morro do Castelo no início do século XX? O jornal selecionado como fonte, uma vez caracterizado como “popularíssimo” (PAIVA, 2008), privilegia a apreensão desses argumentos, visto que, publicado diariamente, evidencia a relação de seu editorial com assuntos do cotidiano popular da época, e debate temas considerados de interesse da ampla população. O jornal, posicionando-se de forma contrária ao desmonte, evidencia seus argumentos legitimadores para então refutá-los. Referidos argumentos são aqui compreendidos como discursos interdependentes de representações sociais, ou seja, considera-se aqui que os argumentos utilizados não se caracterizam como um reflexo direto do cotidiano no Castelo, mas um reflexo do discurso que se constrói sobre ele.
O JORNAL DO BRASIL E O DISCURSO
O Jornal do Brasil foi fundado no Rio de Janeiro (RJ) em 9 de abril de 1891, por Rodolfo de Sousa Dantas e Joaquim Nabuco. Conhecido por sua ampla tiragem – a qual chegou a 60.000 exemplares diários – e sua linha editorial “popularíssima” (PAIVA, 2008), referido jornal conta com todas as suas edições diárias disponibilizadas digitalmente na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Para além disso, é o periódico com mais resultados para o termo “Morro do Castelo” entre os anos de 1920 e 1922, período entre a concessão do desmonte à empresa Adamczyk & C. e a efetiva eliminação do morro – sendo esse o critério de seleção para sua utilização como fonte histórica para o presente artigo. Segundo Maria Lucia Loureiro (2015, n.p.), o “Jornal do Brasil” fazia campanha contra o desmonte do Castelo, denunciando como negociata a obra da prefeitura, concedida em 1920 à Adamczyk & C. Os recortes selecionados permitem apreender argumentos oficiais utilizados para justificar a derrubada do morro, uma vez que, contrário ao desmonte, para além de redigir textos autorais defendendo seu posicionamento e questionando as instâncias governamentais, o Jornal do Brasil permitia que a população publicasse, anonimamente, em seus exemplares textos majoritariamente alinhados a esse.
Ao compreender o conteúdo dos jornais como discursos, ferramenta para a consolidação de representações, faz-se necessário ultrapassar a análise do léxico: é preciso entender o discurso como prática social, comportamento social aceito e reproduzido por indivíduos, levando em consideração os sujeitos da fala e o lugar social ocupado por esses (FOUCAULT, 1996). Há de se perceber os periódicos como documentos elaborados por pessoas, sujeitos aos processos de transformação social, com finalidades específicas e que transmitem a seus leitores visões determinadas de mundo, consolidadas e reproduzidas pelo discurso – como reflexo do contexto e da conjuntura nos quais foram redigidos. Assim sendo, não é possível desconsiderar o contexto internacional e nacional do desmonte do Morro do Castelo, bem como a influências desses fatores nos textos publicados no Jornal do Brasil. Os jornais, como veículos de informação, não podem ser desassociados de relações de poder – de caráter econômico, sociocultural e político – e interdependência em relação a indivíduos ou instituições (SOUZA & CABRAL FILHO, 2013).
Opta-se, portanto, pela utilização de recortes que façam menção ao morro para resgatar os argumentos oficiais favoráveis a seu desmonte, por vezes presentes em artigos publicados anonimamente pela população, questionando sua prudência e validade. Ao anunciarem argumentos e discursos divulgados pelos órgãos de classe para defender seu posicionamento frente às alterações na malha urbana carioca, os periódicos são entendidos como práticas sociais e instrumentos educativos do próprio grupo, pois visam conscientizar e mobilizar sua população leitora em prol da causa defendida nos artigos publicados. Assim sendo, uma vez divulgados à sociedade, os periódicos traduzem experiências e vivências locais comuns em textos e enunciados publicados. Dessa forma, evidencia-se a inserção dos argumentos utilizados nos ideais higienistas previstos para a organização dos centros urbanos e a urgência de se abordar as enfermidades nesse contexto, tornando-se possível indicar paralelos entre as políticas higienistas, as doenças emergentes e a consequente derrubada do Castelo.
Entende-se que o uso de periódicos como fonte para pesquisa permite um entendimento da construção e da percepção da realidade social pelas lentes do próprio grupo que o elabora. Portanto, ao fazer pesquisa com os periódicos, coube ao pesquisador fazer a análise de conteúdo divulgado, apreender as tensões, as relações de poder e os conflitos que perpassam o texto.
O MORRO DO CASTELO: BERÇO DA NAÇÃO
O Morro do Castelo foi escolhido em 1567, por Estácio de Sá, para a fundação efetiva da cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente chamado de Morro do Descanso, Alto da Sé e Alto de São Sebastião possuía uma vista privilegiada que permitia visualizar toda a Baía de Guanabara, assegurando sua vigilância e dificultando novas invasões. Foram construídas no morro a Casa da Câmara, Casa do Governador, um colégio Jesuíta, a Igreja de São Sebastião e uma fortaleza, que dava ao morro seu nome. Foram levados até lá os restos mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade, bem como a pedra que representava o marco de fundação dessa. Esses são alguns dos elementos que conferem ao morro uma inegável relevância histórica não só para o Rio de Janeiro, mas para a nação em sua totalidade – visto a carga simbólica de seu estabelecimento, desenvolvimento e eliminação, bem como a importância desse como marco para a história do Brasil.
Com o crescimento progressivo da cidade do Rio de Janeiro, houve um aumento significativo de sua população e consequentemente a ocupação de morros vizinhos ao do Castelo e das áreas entre esses. A gradativa ocupação das áreas entre os morros e mais próximas às praias, de acordo com Julia O’Donnell (2013), resulta na construção de uma hierarquia da ocupação dos espaços da cidade. Tendo sua ocupação possibilitada pela construção de linhas férreas, a Zona Sul atraiu indivíduos com maior poder aquisitivo – relegando os indivíduos socialmente frágeis principalmente às regiões já ocupadas, como os morros. Assim sendo, bairros como Copacabana passam a remeter a um poder econômico e prestígio social mais elevado em relação a demais áreas, como a região central. Em “Esaú e Jacó”, obra de Machado de Assis (1904) que se passa em parte no morro, o autor enfatiza o contraste social existente entre os moradores do Castelo e de outras regiões da cidade, em especial os moradores de Botafogo (NONATO, SANTOS, 2000). Não somente o Morro do Castelo, mas o centro da cidade do Rio de Janeiro como um todo passa a ser percebido como um local avesso à higiene, em que a grande concentração de pessoas contribui para a proliferação de doenças.
O Morro do Castello é uma verdadeira cidade encravada no coração do Districto Federal. Cerca de 5.000 almas alí habitam, passando de quando em quando pela terrível ameaça de ver a alavanca do progresso fazer profundas cavações com o poderoso auxílio da dynamite, para o completo arrasamento daquella montanha que encerra em si o facio mais histórico da cidade (...) Nunca os poderes constituídos federal e municipal se lembraram de qualquer melhoramento naquelle pedaço desta cidade (...) O Morro do Castello é pois um reduto da pobreza. (JORNAL DO BRASIL, 1920, ed. 60, grifo nosso)
O Jornal do Brasil, periódico carioca, anunciava, no início do século XX, a ameaça – simbolizada pelo advento da modernidade e sua aspiração por progresso – e o descaso, por parte das instâncias governamentais, em relação ao Morro do Castelo. Demolido por completo no ano de 1922, durante a gestão do prefeito Carlos Sampaio – a quem Oswaldo Porto Rocha (1995) atribui, juntamente a Pereira Passos, o título de “prefeito engenheiro”, devido a seus empreendimentos de embelezamento da capital –, o morro foi por muitos considerado uma afronta à higiene e à estética do centro urbano carioca – frequente preocupação no início da República brasileira.
Dessa forma, “botado abaixo” com completo descaso em relação a seus moradores, o coração da capital carioca foi arrancado para que essa pudesse, aos olhos dos governantes, dar continuidade a sua busca por uma modernidade inspirada no contexto europeu da época (ABREU, 1997). De acordo com Mansanera e Silva (2000, p. 117), no contexto nacional desse período, a incipiente industrialização – combinada com as novas feições das cidades e com as demais mudanças pelas quais o país passava, características da busca pela modernidade – conferia nova complexidade à estrutura social nacional. Assim sendo, aos dirigentes republicanos interessava o desenvolvimento de um controle higiênico das cidades, bem como a preservação das forças de trabalho e de políticas demográfico-sanitárias que contemplassem as questões raciais, o que justifica eventuais alterações na malha urbana.
Segundo Lilia M. Schwarcz (1993, p.19), esse foi um “momento de entrada de todo um novo ideário positivo-evolucionista” na nação brasileira, em que a adoção de doutrinas intelectuais e sua aplicação à realidade nacional se reserva à mera repetição de modelos estrangeiros. Apesar das tentativas de adequação da nação aos moldes europeus de civilidade, um dos impedimentos para a inserção do Brasil na modernidade era sua precária condição de higiene e saneamento, resultando em diversos surtos epidêmicos, principalmente nos centros urbanos, que afastavam os navios e viajantes europeus. Mesmo com um considerável crescimento econômico nas primeiras décadas da República, esse foi um período delicado em se tratando da questão sanitária no Brasil.
Os setores governamentais enfrentavam a necessidade de criar políticas de gestão para os surtos de moléstias que acometiam a cidade, em especial as regiões mais pobres, “onde há falta de tudo, principalmente hygiene e cujos moradores são completamente desprovidos dos meios necessários ao combate a uma epidemia” (JORNAL DO BRASIL, 1920, ed. 295, v. 03, n.p.). Seu silêncio em relação ao estabelecimento de medidas sanitárias era rapidamente comentado nos jornais, os quais, ao relatarem que “a Saúde Pública ainda não assentou nenhuma providência tendente a impedir a propagação da terrível doença. Entretanto, é bom de ver o perigo que a ameaça a população” (JORNAL DO BRASIL, 1920, ed. 295, v. 03, n.p.), cobravam ações do governo acerca da situação de insalubridade.
Para além disso, tendo como fundamento as Teorias Raciais e Evolucionistas , igualmente reflexo da modernidade europeia, o Brasil encontrava na miscigenação outro empecilho para ascender ao progresso. Miscigenado e doente, física e moralmente, o país, taxado como degenerado, iniciava, então, uma tentativa de introduzir aos centros urbanos uma racionalidade científica, projetos de cunho eugênico , os quais visavam erradicar a doença, separar a loucura e a pobreza a partir da adoção de programas de higienização e saneamento (SCHWARCZ, 1993), tornando as cidades agradáveis com base nos critérios europeus. Consolida-se, então, no Brasil, como resposta ao panorama apresentado, o pensamento higienista, que associa doença e moral e concebe a educação higiênica e sanitária dos indivíduos como ferramenta para o controle das epidemias, visando à manutenção da ordem, base da nova organização social (SIAL, 2005).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, com base nos periódicos analisados, que as políticas higienistas tiveram extrema influência nos argumentos oficiais utilizados para defender e efetivar a demolição do Morro do Castelo – desde a demanda popular por planos de ação higiênicos no reduto, bem como no modo como a demolição foi realizada, em completo descaso com os moradores da região. Esses argumentos chegaram a ser incorporados pelo discurso popular, uma vez que, ao serem proferidos por membros de classes de poder, possuíam legitimidade em seu conteúdo. Tanto na leitura das bibliografias selecionadas quanto nos dados obtidos como resultado da pesquisa com periódicos, é possível verificar a interdependência entre a medicina e o meio social – visto que o profissional da classe médica modifica direta e indiretamente a sociedade por meio de sua atuação e de seu discurso. Pode-se perceber que a preocupação com a insalubridade da cidade se mostrava presente na linguagem médica e na formação do cidadão brasileiro, que tinha sua conduta, no que tange à saúde e à higiene, normatizada pelas falas propagadas pela classe médica. A prática médica que se percebe pela análise dos periódicos se assemelha àquela descrita por Foucault no que tange a função do discurso médico, uma vez que esse assume um caráter normativo e atua por meio do controle do corpo – preocupando-se, além da cura, com o controle da desordem.
Paula Purim Manfredini está no 8º período do curso de Licenciatura em História e é acadêmica do PIBIC Master da PUC PR, cursando o mestrado em Direitos Humanos. Possui estudos na área da Saúde, História Social e genética. Gosta de plantas, aquarelas e é fã de Friends.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1904.
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LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus. NETTO, Carlos Xavier de Azevedo. LOUREIRO, José Mauro Matheus. CASCARDO, Ana Beatriz Soares. OBJETO, TEMPO E MEMÓRIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA LUNETA. XVI Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (XVI ENANCIB), 2015.
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SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-1930). Cia das Letras, 1993.
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FONTES
JORNAL DO BRASIL. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_03&pasta=ano%20191&pesq=morro%20do%20castelo. Acesso em 15/05/2019.
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