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Um olhar sobre os discursos

  • Foto do escritor: Ìotopía
    Ìotopía
  • 3 de jul. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 4 de jul. de 2020

Por Gabriel Chamma


*(O texto a seguir utiliza a metodologia historiográfica da Análise do discurso, mas, por questão de espaço, não será possível expor na integra o seu conteúdo, por essa razão procuramos selecionar aquilo que acreditamos ser mais proveitoso ao público leigo. Além do mais, nenhuma das afirmações são pesquisas originais nossas, mas sim um compilado de autores reconhecidos nesse campo. Devido ao público alvo, também optamos por referenciar apenas as citações diretas para haver o mínimo de quebras durante o texto).


Antes de começar, o que é discurso? Muitos devem ter pensado em um pronunciamento oral, como algo que vemos em filmes: uma multidão escutando um político falar, ou ainda, em séries adolescentes, quando o protagonista tímido e introvertido se declara àquela ou àquele a quem estava apaixonado. Porém, “discurso” não é apenas isso.


Na realidade, existe um grupo bem grande de diferentes discursos, segundo Helena Brandão, de uma maneira simplificada, discurso é “tudo o que o homem fala ou escreve, isto é, produz em termos de linguagem” (2018, p. 16). Isso quer dizer que, artigos de revistas, livros de filosofia, propagandas, seja na televisão, rádio, revistas ou jornais e mesmo esse artigo, também são discursos. Por esse, e outros motivos, quando estamos lendo – neste artigo “ler” pode ser substituído por “ouvir” e, essencialmente, significa receber e digerir informações – um discurso devemos nos ater, não somente ao que está sendo dito nas palavras, mas também tudo que o compõe. Em outras palavras, para interpretá-los precisamos observar uma série de detalhes além da linguística. Portanto, as imagens, trilha sonora, os gestos que são feitos, as expressões faciais, qual a orientação política de quem escreve, o meio por onde ele é divulgado, se é ao vivo, se há plateia junto do discursador etc., são todas características que devem ser levadas em conta ao consumir um discurso.


Mas é aqui que a definição de discurso fica mais complexa, a frase da Brandão apenas risca a superfície do que é discurso, que, segundo Dominique Maingueneau, seria definida como:


No uso comum, chamamos de “discurso” os enunciados solenes (“o presidente fez seu discurso”), ou, pejorativamente, as falas inconsequêntes (“tudo isso é só discurso”). O termo pode igualmente designar qualquer uso restrito da língua: [...] Nesse caso “discurso” é constantemente ambíguo, pois pode designar tanto o sistema que permite produzir um conjunto de textos produzidos: “o discurso comunista” é tanto o conjunto de textos produzidos por comunistas, quanto o sistema que permite produzir esses textos e outros ainda, igualmente qualificados como textos comunistas (2004, p. 51).

Essa citação importantíssima vai demonstrar outra característica que devemos observar quando lemos o discurso: seus contextos. Um discurso tem seu contexto histórico (1); seu contexto referente ao meio de comunicação em que está inserido (2); e, finalmente, o contexto de textos em que ele está inserido, como o exemplo que o autor cita do “discurso comunista” (3). Os autores concordam que tirar um discurso de seu contexto muda completamente seu sentido, seja qualquer um desses. A seguir desenvolveremos e exemplificaremos melhor cada um deles.


1. Contexto histórico: devemos saber exatamente em que situação o discurso se encontra, quem o escreve, porquê o escreve e com qual finalidade. Por exemplo, se formos estudar textos teóricos, como As Teses de Abril de Vladmir Lênin, devemos lê-lo sabendo que foi escrito durante a Primeira Grande Guerra, enquanto o autor era transportado pelos alemães até a Rússia e, ainda por cima, entre as revoluções menchevique e a bolchevique. Mas, também devemos saber que era um panfleto político de caráter revolucionário radical, que tinha a intenção de conseguir apoiadores e traçar um plano de ação do partido bolchevique durante o governo menchevique.


2. Meio de comunicação: a influência de quem discursa é muito relativa ao meio de comunicação que o discurso está inserido, a quem o discurso é dirigido e à qual situação em que ele se encontra. Esse aspecto é fácil de entendermos olhando para o nosso cotidiano, já que situações e públicos diferentes geram tons de conversas e assuntos diferentes. Nós não falamos do mesmo jeito com nossos pais, amigos de bar/festa ou nossos chefes, nós mudamos a forma de nos portar conforme o contexto. O mesmo ocorre com os nossos tópicos de conversação, por exemplo, quando estamos com rodas de conversa de amigos diferentes em uma mesma festa, o cenário é o mesmo, mas o assunto pode mudar completamente. Isso ocorre pois os referenciais são diferentes. Um exemplo são as famosas “piadas internas”, que em um grupo geraria muitas risadas, mas em outro geraria embaraço e confusão, por ninguém ter as informações que precisam para entender a piada. Esse caso ocorre igualmente com revistas, jornais ou autores teóricos. Por exemplo, uma propaganda de artigos direcionados a mulheres idosas pode trazer uma atriz, como garota propaganda, fazendo menção a alguma cena de um filme que essas senhoras reconheceriam, mas que hoje não é mais tão popular, fazendo com que as gerações mais novas não entendam. Para essa propaganda criar um vínculo com o seu público alvo, esse deve conseguir captar a referência integralmente, caso contrário, será completamente inútil. Há uma diferença significativa entre discursos escritos ou orais, e no caso desses, se há público ou não público presencialmente junto do discursador. Um discurso escrito para ser lido posteriormente tem menos contato e, portanto, sofre menos interferência do interlocutor do que um discurso oral com pessoas assistindo, pois esses podem interferir diretamente no desenrolar do pronunciamento. Podemos citar a abertura da copa do mundo de 2014, quando o público vaiou a então presidenta da república e o presidente da FIFA ao citar o nome dessa (ANEXO I). Quando começam as vaias, notamos alterações nos modos de ambos e o presidente da FIFA, inclusive, se vê obrigado a chama a atenção da plateia.


Para elaborar um discurso, é dever do autor saber quais são as referências de seu público alvo ou, como chamado na área, o “saber enciclopédico”, que diz respeito ao conjunto de conhecimentos e outros discursos que foram absorvidos pelo seu “leitor-modelo”, aquele(a) que possui todas as referências necessárias para compreender o discurso. Para ilustrar, peguemos o comercial do Shampoo Head and Shoulders com o treinador Joel Santana (ANEXO II). Para entender completamente esse comercial é preciso que as pessoas conheçam o meme em que o técnico de futebol, ao dar uma entrevista em inglês, se confunde com as palavras da língua estrangeira e a entrevista se torna incompreensível (ANEXO III).


3. Conjunto de textos em que o discurso está inserido: é nessa característica que cabe a análise foucaultiana de discurso:


[...] discurso nada mais é do que um jogo, de escrita no primeiro caso, de leitura, no segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, esse leitura e escritura jamais põem em jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevem-se na ordem do significante (FOUCAULT, 1999, p. 49).

ou seja, os leitores não são agentes passivos do discurso, esses, ao lerem, absorvem e produzem novos discursos que fazem parte de um conjunto de sucessões de discursos sobre aquele tema. Por esse fato, devemos saber identificar as referências que os autores utilizam de outros autores e as suas pequenas nuances. Se fossemos continuar a utilizar o exemplo apresentado no item número 1 de “As Teses de Abril”, devemos lê-lo dentro do “discurso comunista”, ou seja, a série de textos que tratam desse mesmo tema - tanto os anteriores, como os seus contemporâneos. Nesse caso as referências seriam: Karl Marx e Friedrich Engels (consequentemente, Georg Hegel), Rosa Luxemburgo, Gueorgui Plekhanov, Leon Trótski, entre outros, pois todos esses tiveram influência direta de “As Teses de Abril” na sua forma de pensar e em suas obras. Mas, temos que ter em mente que não é porque um discurso está em uma “caixa” – por exemplo, “discurso comunismo”, “discurso cristão”, “discurso europeu” - diferente que ele não tem certo grau de interferência. Na realidade, é justamente o contrário, em alguns casos, um discurso que não faz parte do “discurso comunista” pode ter, inclusive, mais interferência desse do que um que pertence. Essa separação em caixas distintas serve apenas para que seja possível delimitar uma sequência de textos limite, para que não tenhamos que retornar aos primeiros textos da Grécia Antiga toda vez que quisermos falar de um assunto.


Nesse sentido pudemos observar que um discurso é ao mesmo tempo único, como também faz parte de um conjunto amplo e indissociável de outros discursos.


Artigo por: Gabriel Chamma

Formado em Licenciatura em História pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e em língua inglesa pela instituição Talken, com experiência na área de educação adquirida por meio de estágio e programa de bolsas Residência Pedagógica em variados anos do ensino médio e fundamental, além da experiência de ministrar um grupo de estudos com enfoque em Teoria da História durante a graduação.


ANEXOS


I.


II.


III.



REFERÊNCIAS


BRANDÃO, Helena H. N. Analisando o Discurso. Museu da Língua Português.

Disponível em: https://pt.scribd.com/document/109871517/Analisando-o-Discurso-Texto-de-Helena-Hathsue-Nagamine-Brandao-USP acesso em: 05 nov. 2018.

CAREGNATO, Rita C. A. MUTTI, Regina. Pesquisa Qualitativa: Análise de Discurso versus Análise de Conteúdo. Texto contexto - enferm. [online]. Florianópolis, v. 15, n. 4, p. 679-684. out./dez. 2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-

07072006000400017 acesso em: 06 nov. 2018.CHARAUDEAU, Patrick, MAINGUENEAU. Dicionário de análise do discurso. 3, ed. São Paulo: Contexto, 2018.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 5. ed. São Paulo: Loyola. 1999.

PIPES, Richard. História concisa da revolução russa. Rio de Janeiro: Record,

1997.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de Textos de Comunicação. 3. ed. São Paulo: Cortez. 2004.

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de Si no Discurso: a construção do ethos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011. Cap. 3. p. 69-91.

MAINGUENEAU, Dominique. Gêneses dos Discursos. 2. Ed. São Paulo: Parábola Editora, 2013.

ULAM, Adam Bruno. Os Bolcheviques: História Política, Intelectual e biográfica da Revolução Russa e de seus Líderes. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.


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