As veias da América Latina ainda estão abertas e o sangue continua escorrendo
- rayta35
- 19 de set. de 2020
- 5 min de leitura

Há séculos, desde a chegada dos europeus, que a América, não só “latina”, sofre com a exploração desenfreada e empobrecimento, que ao longo do tempo se tornou estrutural e sistêmico. Dessa forma, esse presente artigo de opinião se propõe a analisar brevemente, de que forma Eduardo Galeano, em sua obra “As veias abertas da América Latina (1971), via o sistema colonial e quais os resultados dessas explorações desenfreadas nos tempos atuais.
De antemão vão algumas discordâncias minhas no que se refere às classificações da obra de Galeano, em grande medida, As veias abertas da América Latina é classificada como História Política, entretanto, na minha visão, esta obra se insere mais na visão da História Econômica do que na Política. Isso porque o modus operandi da narrativa de Galeano perpassa em analisar como a “empresa colonial” sugou e empobreceu a América Latina, de modo a deixá-la completamente dependente de seus invasores e de suas estratégias de dominação.
Eduardo Galeano nasceu em 3 de setembro de 1940 e morreu de câncer em 13 de abriu de 2015, aos 74 anos em Montevidéu, no Uruguai. Foi jornalista e escritor, autor de mais de 40 obras. Na infância foi muito devoto à fé católica, porém, ao longo do tempo tornou-se desprovido de religião, tema esse que o custou muito caro, tendo em vista que um dos temas principais em suas obras, além do futebol, é claro, foi justamente a crítica ao sistema religioso que se instalou nas Américas.
Durante o golpe militar no Uruguai Galeano foi preso e exilado, vivendo muitos anos na Espanha e retornando para o Uruguai somente no período de redemocratização do país. Antes de entrarmos no tema em questão é importante ressaltar que Galeano pode ser inserido no movimento histórico-filosófico do “pensamento decolonial”, que visa apontar o eurocentrismo e dominação de grandes potências ao longo dos processos históricos, com o intuito de revisar e reescrever a história, dando protagonismo ao nativo ou ao “povo” que se construiu nas Américas, ressaltando sempre a importância de suas raízes culturais originárias.
O pensamento decolonial se iniciou com movimentos em diversos países do continente africano, e também na Índia, na primeira metade do século XX- lugares esses que sofreram diretamente com a dominação das colônias europeias, assim como os países latino-americanos. Entretanto, o pensamento decolonial chegou às Américas somente na segunda metade do século XX, tendo como pioneiros nomes como Enrique Dussel com “Filosofia de la liberación” (1977) e até mesmo Eduardo Galeano.
Mas por que “As veias abertas da América Latina” se tornou tão emblemática para a história Latino-americana?
“As veias abertas” surge como um grito de socorro, ou até mesmo, como etá na moda no Brasil atual: como uma “nota de repúdio" aos países imperialistas, como Portugal, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. Mais recentemente, Eduardo Galeano pronunciou-se, dizendo que a maneira como foi escrito o livro não era mais a maneira com que ele escrevia, pois nesta obra, o que transpassou foi seu ressentimento com o imperialismo, de modo que a escrita na sua visão, foi feita de forma extremamente pesada, com o intuito de chocar o leitor, o que ele fez de forma magistral, com certeza!
Nos primeiros capítulos ele ressalta como Portugal, no Brasil e Espanha no restante da América Latina, massacraram os povos nativos, os escravizaram, em sistemas coloniais desumanos, como por exemplo: a produção cana-de-açúcar no Brasil e os sistemas de “encomiendas” na América espanhola. Em certo momento o autor chega a afirmar que o sistema de exploração dos recursos foram tão intensos que toda a prata retirada da América Espanhola daria para construir uma ponte inteira desse minério, desde o Peru até a Espanha.
O que Eduardo Galeano revela é que praticamente todos os países que foram colônia de exploração nos processos coloniais, e posteriormente sofreram com o imperialismo dos Estados Unidos, tornaram-se extremantes pobres, pois uma colônia de exploração só é importante até o momento em que ainda se encontra recursos. Após os recursos acabarem elas são deixadas à deriva, extremamente dependentes das metrópoles, tanto economicamente como politicamente. Pelo menos o que sobrou dessas explorações.
Além disso, um dos pontos mais marcantes da obra de Galeano trata-se de como o cristianismo colonizou o imaginário ameríndio, deixando-o extremamente doente. Mas não só isso, a inserção da Igreja na América represente o auge do poder e dominação europeia no “Novo Mundo”. De acordo com o autor, o movimento do Barroco, foi de grande importância para os processos coloniais, tendo em vista que, o Barroco agia principalmente na ressignificação de símbolos e do imaginário, o que facilitava o processo de dominação e conversão dos povos nativos.
Aos que não se adequaram ao novo modo de vida, foram julgados nos tribunais inquisitoriais e legados à tortura e à morte. Muitos desses eventos podem ser percebidos em outras obras como a de Miguel León-Portilla: A conquista da América Latina vista pelos índios, na qual o autor traz um relato de um nativo, contemporâneo ao período da conquista de Tenochtitlán em 1519, em um evento conhecido como “A matança do Templo Maior”:
Pois assim acontecem as coisas: enquanto se está desfrutando da festa, ora com baile, ora com canto, emendando um canto a outro, e os cantos são como um estrondo de ondas, neste exato momento os homens de Castela decidem matar o povo. Vêm logo pra cá, todos vêm com armas de guerra.
[…] Já então começaram a passar a todos ao fio das espadas, ferindo com lanças e espadas. Alguns foram atacados por trás; imediatamente caíram deixando dispersos na terra, suas entranhas. A outros dilaceraram a cabeça. […] E alguns que ainda em vão corriam: Arrastavam os intestinos e pareciam emaranhar-se neles. [...] Outros se esconderam entre os mortos, fingiram-se de mortos para escapar. [...] O sangue dos guerreiros corria como se fosse água: como água que se alaga, e o mau cheiro do sangue e das entranhas, que pareciam arrastar-se, tomava conta do ar (LEÓN-PORTILLA, 1987).
E ainda hoje é possível ver o resultado desses processos coloniais. Podem ser visto no imaginário religioso, devido aos processos sincréticos que as populações nativas e africanas foram submetidas, também na expressão da violência das periferias latino-americanas, e principalmente na pobreza extrema de muitas regiões e países que sobreviveram de maneira precária e sub-humana depois dos abandonos das metrópoles. Sem contar o processo de escravização que carregou consigo preconceitos estruturais, marginalizando tanto os povos de matriz africana, quanto os povos nativos.
A própria “criação” da América Latina está envolta a muitas controvérsias. Alguns autores como Leslie Bethell, chega a afirmar que esta criação serviu como uma articulação política para relegar a América Latina ao terceiro mundo e subdesenvolvimento.
Dessa forma, pode-se dizer que o grito de repúdio de Galeano em As veias Abertas da América Latina ainda retumbam e ecoam na história. As veias continuam abertas, e elas sangram. Sangram com as matas queimadas do Pantanal e da Amazônia, sangram com os povos originários cada vez menores, sangram com as batidas policiais e violência contra o povo preto, sangram com a volta da fome, sangram com o saudosismo ao autoritarismo. As veias continuam abertas e a América está quase esvaída em iniquidade, provocada por uma restrita classe dominante. Até quando a América suportará?
Referências:
LEÓN-PORTILLA, M. A conquista da América Latina vista pelos Índios. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990.
DUSSEL, E. Filosofia de la liberación. México: Fondo de Cultura Económica, 2011.
O Brasil e a ideia de América Latina - Leslie Bethell
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