Baseado em fatos reais (*mas nem tanto assim)
- Vivian Maria Korb
- 10 de out. de 2020
- 4 min de leitura
Não se pode negar a imensa influência que filmes e séries exercem sobre a nossa percepção acerca dos mais diversos acontecimentos e períodos históricos e sobre a História como um todo.
Ao assistirmos conteúdos tidos como “históricos” estamos (literalmente) utilizando uma lente do presente para nós teletransportamos para uma outra época. Sei que isso já é de conhecimento de muitos, mas ainda sim estamos, até certo ponto, reféns dessas obras que se auto definem “baseadas em fatos reais”. Aposto que você já ficou na dúvida se um fato representado aconteceu realmente daquela maneira, mas, como é tudo tão verossímil, deixamos de lado nossa curiosidade de checar os fatos e seguimos com nossa vida.
Não escrevo nada disso como uma forma de criticar esse tipo de conteúdo, muito pelo contrário, eu adoro um bom drama histórico, um filme de época e uma série sobre aventuras em tempos passados. O trabalho impressionante da direção de arte pode recriar nos mínimos detalhes uma usina nuclear da União Soviética e reproduzir o vestido que Diana, Princesa de Gales, usou em seu casamento. E eu acho isso impressionante! Além disso, para a História, essas obras são ricas fontes de estudos sobre o período em que foram produzidas, pois mesmo se propondo a retratar períodos passados, falam muito mais sobre o presente em que foram produzidas.
Porém, o que mais me fascina são aquelas obras que utilizam personagens e acontecimentos históricos reais e constroem novas narrativas, pouco preocupadas com manter a apuração histórica. Elas propositalmente moldam a história ao seu favor, sem medo de ser feliz e de assumir liberdades poéticas e criativas.
As duas últimas criações do roteirista e produtor australiano Tony McNamara são minhas favoritas dentre todas as produções de época. Exatamente por se livrarem completamente dessas preocupações com fatos históricos e criarem um universo verossímil dentro de seus próprios absurdos. Essas obras entendem que falam muito mais sobre o presente em que foram criadas, do que sobre o passado que buscam representar e utilizam isso ao seu favor. Em entrevista ao site Observer, McNamara fala:
“É da mesma forma que alguns gêneros libertam você para falar sobre o presente em uma época diferente, como o faroeste ou a filme de ficção científica. Você pode falar sobre o presente de uma maneira que, fazendo uma história sobre o presente, não lhe dá a mesma capacidade de fazer. Isso dá a você uma maneira mais forte de falar sobre o seu próprio tempo de uma forma com que as pessoas possam se relacionar, mas as libera de assistir suas experiências cotidianas.”
Mesmo que você não tenha reconhecido o nome de McNamara, provavelmente deve conhecer as últimas produções em que ele teve uma participação: “A Favorita”, filme de 2018 que acompanha a rainha Ana da Grã Bretanha e “The Great”, série de 2020 sobre a Catarina, a Grande, imperatriz da Rússia.
Essas obras aceitam que é impossível reconstruir e recriar o passado, elas se desprendem dessas preocupações e utilizam esses cenários de época ao seu favor, para criar, antes de tudo, narrativas centradas em experiências humanas:
“Nós nem sabemos tudo o que eles fizeram”, diz McNamara. “Existe essa ideia porque a história foi escrita que sabemos o que aconteceu. Nós realmente não sabemos. Agora seria um pouco diferente porque há mídia, mas naquela época nós confiávamos em registros escritos e pinturas. Mas eles pareciam de uma certa maneira em retratos porque eles iam fazer seus retratos parecendo de uma certa maneira. Isso não significa que eles pareciam assim todos os dias. Eles são apenas seres humanos. Estávamos pensando em como você seria como pessoa nessas experiências.”
Já na abertura de “The Great” recebemos o aviso “*an occasionally true story” (“uma história ocasionalmente real), ficando bem claro esse desprendimento em relação à apuração histórica. É criado um ambiente de absurdos propositais, que fica bem nítido ser incoerente com o período histórico representado. Os personagens xingam e utilizam palavras como “fuck” repetidas vezes, os diálogos são carregados de humor satírico e irônico, são rápidos e propositalmente rítmicos, passando a ideia de que eles foram realmente roteirizados. Tudo passa a ideia de que aquilo que não é uma representação histórica apurada. Sobre a representação de Catarina II em “The Great”, McNamara fala:
“Contanto que eu sentisse que estávamos contando a essência de quem ela era e sua história, os detalhes históricos [não importavam]. Vá ler um livro ou assistir a um documentário, sabe? Não é uma aula de história, é um show. É o que costumávamos dizer sobre The Favorite também.”
Se livrando dessas amarras é possível utilizar esses cenários de grandes acontecimentos e personalidade históricas para criar novas experiências para o público. De acordo com McNamara, “tem algo no passado que fala com a gente no presente”. E eu acho que utilizar essa fascinação que temos com o passado para criar novos tipos de histórias e narrativas, que falem de uma maneira tão direta com nossa realidade atual, é genial.
E eu não vou dizer que assistir “A Favorita” e “The Great” não gera nenhum estranhamento, muito pelo contrário, estamos tão acostumados com os dramas históricos que tentam ao máximo fazer jus ao título de “baseado em fatos reais”, que, quando as assistimos, parece que essas obras estão cometendo um crime. Porém, quando esse estranhamento é superado, mergulhamos de cabeça dentro desses universos que misturam tão bem presente e passado, tudo em prol de uma boa história e não da História.
Se você ainda não assistiu essas obras, fica ai nossa recomendação!
*Os trechos da entrevista de McNamara ao Observer utilizados neste artigos são uma tradução livre do inglês. A versão original está disponível em: https://observer.com/2020/05/tony-mcnamara-interview-the-great-the-favourite/
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