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O imaginário oitocentista na obra: A Volta ao Mundo em 80 dias

  • Foto do escritor: Marcos A. Manoel Junior
    Marcos A. Manoel Junior
  • 4 de out. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 27 de jun. de 2021

Literatura e História, provavelmente todos já ouviram essas palavras, afinal, são duas matérias que temos na escola. E já na escola aprendemos que: A História é a verdade enquanto a Literatura é a ficção inventada. Crescemos com esse estigma, e eu como historiador tenho que admitir que as aventuras ficcionais são mais atraentes do que a realidade. O que seria da Idade Média sem os dragões e os romances cavalheirescos? O que seria da Grécia Antiga sem a Odisseia? Ou o que séria do século XIX sem as viagens extraordinárias de Jules Verne?


Penso que todos, em algum momento da vida, já quiseram dar a volta ao mundo em 80 dias utilizando de um balão, viajar à lua, estudar magia, passear pelo condado... e certamente também penso que ninguém quis viver no universo distópico de Fahrenheit 451, onde não podemos ter, vejam só, a Literatura!


Contudo, as literaturas ficcionais têm muito da nossa realidade. Podemos até dizer que sem a realidade, não poderia existir a ficção. “Mas como assim, a ficção não é imaginação do irreal?” Sim, mas sempre quando imaginamos coisas elas se assemelham com alguma coisa que presenciamos ou que vimos. Nunca sonhamos com um rosto de alguém que nunca vimos, nem que seja de relance. E é assim com histórias de romances e aventuras da literatura. As Crônicas de Nárnia tem muita inspiração da bíblia em seu discurso. Jules Verne em meio as aventuras que seus protagonistas enfrentam, traz um retrato das transformações tecnológicas que a sua sociedade está passando com a Revolução Industrial. São as representações do mundo real que forjam as imaginações do irreal, e é isso que nos interessa enquanto historiadores.


Uma vez afirmaram em uma sala de professores, enquanto conversávamos sobre temas de TCC, que era impossível que nós historiadores estudássemos Harry Potter, afinal de contas, “Harry Potter nem existe!” – afirmou o rapaz, que vejam só é historiador. Pode parecer assustador ouvir uma coisa dessas hoje em dia, afinal, a Literatura já há muito tempo serve de fonte para os estudos da História. Porém, não posso culpar o rapaz por ter esse pensamento, pois infelizmente, assim como o relógio de Jean Passepartout, a História sempre está atrasada com relação às outras ciências humanas, e o pensamento cientificista do século XX ainda se faz presente em alguns círculos acadêmicos tradicionais, uma vez que a Historiografia Brasileira só recentemente passou a abarcar estudos da chamada Nova História (PESAVENTO, 2012), tendo ainda muitos resquícios das escolas cientificistas do século XIX.


A ideia desse artigo foi uma das primeira que tive quando demos início ao Ìotopía. O uso de A Volta ao Mundo em 80 dias de Jules Verne está estritamente ligado com as imaginações que eu tinha enquanto criança sobre a História. Na apresentação da edição dos Clássicos da Zahar, o editor informa que esse foi o livro que deixou Jules Verne rico, além de promover algo até então inédito: a venda de objetos, como jogos e souvenires baseados na obra. Do mesmo modo, foi por meio de um jogo, que 131 anos depois do lançamento do livro, tive contato não só com a obra, mas com o século XIX. Trens, Navios e aventuras pelo mundo tomaram conta das minhas imaginações e me faziam pensar como a História era fantástica. A obra voltou aparecer durante a graduação, enquanto estudávamos História Contemporânea. Ao ler A Era do Capital, 1848 – 1875 de Eric Hobsbawm, muito de literatura pode ser vista na obra, inclusive, a aventura de Phileas Fogg e Jean Passapartout ao redor do globo, serviram de inspiração para o capítulo três: O Mundo Unificado. O que prova mais uma vez que a História e a Ficção literária se entrelaçam (mesmo que quando escrito o livro, a literatura ainda não tivesse tido grandes estudos e estivesse difundida na historiografia).


Portanto, um artigo ou um estudo sobre A Volta ao Mundo em 80 dias já é um desejo antigo, que consegui conciliar agora com a abertura de nosso Clube de Leitura – o Booktopía. Já de antemão peço desculpas caso, no decorrer da escrita, tenha algum equívoco envolvendo o uso da Literatura – mesmo que as bases metodológicas sejam praticamente as mesmas (práticas e representações/ Imaginários e discursos), que trabalho em outras pesquisas, pois é meu primeiro artigo que utilizo de tal fonte. Assim, nas próximas linhas convido o leitor a refletir um pouco sobre o imaginário oitocentista presente na obra já citada de Jules Verne.

JULES VERNE, UM HOMEM A FRENTE DE SEU TEMPO?

Ao falarmos de Jules Verne, falamos de século XIX, e falando de século XIX falamos de invenções tecnológicas, viagens extraordinárias, trens, navios e balões – todas as transformações que a dupla revolução (francesa e industrial) ajudaram a consolidar. Considerado o pai da Ficção Científica, Verne era apontado como o “inventor do futuro”. Oras, quem poderia imaginar em plena Era Vitoriana uma máquina que poderia adentrar 20 mil léguas submarinas ou uma máquina que capaz de realizar uma viagem à Lua? Contudo, não podemos deixar de analisar que Verne é na verdade, fruto de seu tempo. As transformações tecnológicas e descobertas científicas provenientes da Segunda Revolução Industrial, que moldaram a sociedade no curto espaço de tempo entre 1848 e 1875, eram capazes de criar as mais diferentes ideias e projeções do futuro que há de vir em mentes consideradas férteis.


O autor nasceu em Nantes, França, em 8 de fevereiro de 1828 e morreu em Amiens em 1905. Primogênito de Pierre Verne, um advogado, Jules desejava conhecer o mundo, já seu pai o via como seu sucessor nos negócios da família. Enviado para estudar Direito em Paris, Verne começou a frequentar salões literários, quando conheceu Alexandre Dumas que o ajudou no início de carreira. Foi também nesse período em que o autor teve contato com as conquistas cientificas e técnicas da época:

{...} uma ciência “positiva”, operando com fatos objetivos e precisos ligados rigidamente por causa e efeito, e produzido “leis” uniformes e invariantes além de qualquer possível modificação, era a chave mestra do universo, e o século XIX a possuía. (HOBSBAWM, 2016, p. 405)

Verne passou a unir suas fantasias de viagens exploratórias pelo desconhecido, com as novidades da ciência positiva, que ainda eram misteriosas para seus contemporâneos. “Sensível às maravilhas, às formas elaboradas pelo imaginário coletivo de seu tempo, lhe dá substância em seus romances” (ALMEIDA, 1998, p. 121), enaltecendo o homem europeu, o colocando em posição de superioridade frente a natureza e sendo o detentor do progresso.


É conhecendo Pierre Hetzel que a carreira do autor decola. O editor conseguiu canalizar as ambições do autor com os desejos dos leitores, o que tornou Jules Verne um dos mais celebres autores do século XIX, tendo escrito mais de 100 livros e traduzidos para mais de 148 países. Seu sucesso absoluto veio com as suas Viagens Extraordinárias encontrando o ápice com A Volta ao Mundo em 80 dias, escrito em 1873. Verne é por assim dizer, um espírito de seu tempo.

A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS E O IMAGINÁRIO CIVILIZATÓRIO EUROPEU

Eric Hobsbawm ao escrever: O Mundo Unificado, terceiro capítulo da obra A Era do Capital, aborda o salto que a Europa teve entre 1848 e 1875, enfatizando o uso das estradas de ferro e dos telégrafos à serviço do Império Britânico. “A chegada da estrada de ferro era em si mesmo um símbolo revolucionário, já que a construção do planeta como uma economia única era, de várias formas, o aspecto mais espetacular e de maior alcance da industrialização” (HOBSBAWM, 2016, pp. 75-76). Afinal, sem tais recursos, Phileas Fogg – “um personagem enigmático, a cujo respeito nada se sabia, se não tratar-se de homem refinado e uma dos mais famosos gentleman da alta sociedade inglesa” – jamais conseguiria cumprir sua aposta com os cavaleiros do Reform Club. Ao conversarem sobre um roubo ao banco de Londres, os membros do clube tentavam imaginar para onde o ladrão iria.

- A onde imagina que ele possa ir?

- Não faço a menor ideia – respondeu Andrew Stuart –, mas afinal de contas, a terra é vastíssima.

– Antigamente até que era – disse Phileas Fogg.

{...} Por que antigamente? Porventura a terra diminuiu de tamanho? – retomou Andrew Stuart.

– Sem dúvida – opinou Gauthier Ralph.

– Concordo com Mr. Fogg. A terra diminuiu, uma vez que atualmente a percorremos dez vezes mais rápido do que cem anos atrás. E é isso que, no caso nos ocupa tornará as buscas mais ágeis.

{...} Mas o incrédulo Stuart não se convencera e, terminada a partida (estavam jogando Whist), insistiu:

- Convém dizer, Mr. Ralph – ele prosseguiu –, que encontrou uma maneira curiosa de dizer que a terra encolheu! Quer dizer, só porque hoje a percorremos em três meses...

– Em apenas oitenta dias – disse Phileas Fogg. (VERNE, 2019, p.30)

A cartografia europeia no começo dos oitocentos, trazia consigo uma vastidão de espaços em branco – principalmente no que diz respeito a África, Ásia central, o Interior da América do Sul e partes da América do Norte e Austrália, sem mencionar os quase totalmente inexplorados Ártico e Antártico (HOBSBAWM, 2016). O interior dos continentes era, em grande medida, mais conhecidos por meio de mercadores e coureurs de bois do que por cartógrafos europeus.


Com o aumento da industrialização e por consequência, a busca por novos mercados consumidores, levaram a uma crescente onda de explorações por áreas até então desconhecidas para os grandes centros. A cartografia europeia passava a preencher gradativamente os espaços vazios dos mapas, ao ponto que em 1875, o mundo já era mais conhecido do que nunca fora antes.


Hobsbawm questiona o quanto teria durado essa viagem a Phileas Fogg em 1848, e nas suas contas, sendo a viagem realizada inteiramente por navios a vela, a viagem não levaria menos que 11 meses. Assim, a grande transformação que ajudará Fogg e seu criado, o francês Jean Passapartout a cumprirem com os 80 dias, deu-se em terra, “através das estradas de ferro, e assim mesmo não pelo aumento da velocidade tecnicamente possível das locomotivas, mas pela extraordinária extensão da construção de linhas de estrada de ferro” (HOBSBAWM, 2016, p. 94).


Se considerarmos que ao “explorar” as terras para preencher os espaços da cartografia, o objetivo era além de tudo, o de dominar outros povos e expandir a rede ferroviária e as comunicações com o telégrafo, de maneira direta:

Explorar significava não apenas conhecer, mas desenvolver, trazer o desconhecido e, por definição, os bárbaros e atrasados para a luz da civilização e do progresso; vestir a imoralidade da nudez selvagem com camisas e calças, com uma providencial e beneficente manufatura de Bolton e Roubaix, levar as mercadorias de Birmingham que inevitavelmente arrastavam a civilização para onde quer que fossem. (HOBSBAWM, 2016, p. 91)

Os exploradores europeus eram imbuídos de levar o “progresso” do liberalismo industrial, aproximando o mundo. E ao mesmo tempo, promoviam a desigualdade.


O explorador em A Volta ao Mundo em 80 dias, se concentra na figura de Fogg, inglês sempre descrito como homem culto e que não perdia seus modos. Em cada um dos países, o personagem não se importa com a cultura dos povos, tampouco se da ao trabalho, muitas vezes, de sair do navio ou do trem para conhecer o local em que passava, seu interesse maior era o de cumprir com o objetivo imposto e não perder sua aposta. A descrição da viagem em si, fica por conta de Passapartout, e aqui que podemos encontrar grande parte do imaginário colonizador europeu. O personagem descreve as localidades em que se aventuram e sempre busca comparar às regiões civilizadas em que os ingleses já dominavam, com as áreas “selvagens e bárbaras” dos nativos:


A locomotiva conduzida pelo braço de um maquinista inglês e alimentada por carvão inglês, expelia sua fumaça sobre lavouras de algodão, café, noz moscada, cravo-da-índia, pimenta vermelha. {...} Durante aquela manhã, após deixarem a estação de Malligaum, os aventureiros atravessaram um território funesto, tantas vezes ensanguentado pelos sectários da deusa Kali {...} Era naquela região que Feringhea, chefe dos thugs, rei dos estranguladores, exercia sua dominação. Unidos numa associação inaturável, esses assassinos estrangulavam, em homenagem a deusa da morte, vítimas de todas as idades, sem derramar uma gota de sangue, e houve um tempo em que não se andava por aquele chão sem tropeçar num cadáver. O governo inglês impediu diversos assassinatos desse tipo, mas a horripilante associação continua a existir e a operar. (VERNE, 2019, pp. 75 e 76)


Outro trecho, em que os personagens resgatam uma moça indiana “de aspecto europeu”, Fogg considera os rituais da cultura sutty como um “Costume Bárbaro”:


Esses costumes bárbaros ainda subsistem na Índia? Os ingleses não conseguiram suprimi-los? (VERNE, 2019. p. 89)


A descrição de povos e lugares que Verne nos apresenta em grande medida colaboram com a visão evolucionista da civilidade propostas pelo Darwinismo Social, em que justificavam a superioridade de raças com relação às outras. “o argumento é frágil, mas era um apelo natural para aqueles que queriam provar a inferioridade racial, por exemplo, dos negros com relação aos brancos – ou melhor, de qualquer um em relação aos brancos” (HOBSBAWM, 2016, p. 401). A visão do outro que Verne aborda em sua obra, é o reflexo dos valores burgueses presentes na sociedade oitocentista, pois:

Na sociedade europeia “racional” que se formava, na qual predominavam os novos valores burgueses, difundiu-se o ideal evolucionista – próprio do sistema capitalista e colonizador – pois atrelado ao conceito de cientificidade, estava o conceito de civilidade, que distanciou “cientificamente” as sociedades evoluídas/civilizadas das primitivas. (ZECHLINSKI, 2004. p.2)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentei nesse texto abordar uma analise a respeito do imaginário oitocentista na obra de ficção: A Volta ao Mundo em 80 dias de Jules Verne. Claro, devido ao espaço não conseguimos aprofundar mais a análise, mas considero que conseguimos dar conta de ao menos, mostrar que o contexto de produção de uma obra interfere diretamente nas suas representações. O mundo que Jules Verne nos apresenta é voltado para o progresso. Passepartout responde em determinada parte que seu chefe está indo “sempre à frente”. A ideia de civilidade europeia que aparece em diversas partes do livro, nos mostra que o progresso vindo da industrialização só beneficia um povo, o europeu. Claro, não quero aqui criar um “cancelamento” ao Jules Verne, mas demonstrar que até em obras fantasiosas, a realidade se faz presente e nos mostra o imaginário de uma determinada sociedade.

REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Marco Antônio de. A Literatura de Aventuras e a Expansão do Ocidente: as viagens extraordinárias, de júlio verne. Revista de Ciências Sociais (Rcs), Fortaleza, v. 29, n. 1/2, p. 120-132. 1998. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/article/view/42581

ARAUJO, Eduardo J.; SULAMITA, Maybel S; FUNKE, Willian. Júlio Verne e A volta ao mundo em oitenta dias. Uma reflexão sobre o Orientalismo na literatura oitocentista. Revista Vernáculo, [S.l.], dec. 2012. ISSN 2317-4021. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/33711>. Acesso em: 04 oct. 2020. doi:http://dx.doi.org/10.5380/rv.v0i30.33711.

HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital, 1848 – 1875. 25ª ed – São Paulo: Paz e Terra, 2016

PESAVENTO, Sandra. História & História Cultural. 3ª ed. - Belo Horizonte: Autêntica, 2012

PINSKY, Carla; LUCA, Tânia (orgs.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2015

VERNE, Jules. A Volta ao Mundo em 80 dias / Trad. André Telles. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2019. (Clássicos Zahar)

ZECHLINSKI, Beatriz Polidori. História e Literatura: questões interdisciplinares. História em Revista (UFPel), Pelotas, RS, v. 09, p. 213-250, 2004.

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