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O passado jogado: Videogames e narrativas históricas

  • Foto do escritor: Marcos A. Manoel Junior
    Marcos A. Manoel Junior
  • 31 de jul. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 28 de jun. de 2022



O videogame é um dos maiores fenômenos culturais dos últimos cinquenta anos, e um dos maiores propagadores da História para os mais diferentes públicos. Possuindo uma linguagem própria, que alia narrativas virtuais com um sistema de regras lúdicas (BELLO, 2017), os videogames com temáticas históricas são capazes de criar mundos e sociedades, simulando e resgatando acontecimentos e fatos do passado – não considerando como uma cópia dele –, e assim, agindo como interlocutor de um discurso criado, que possui representações e ressignificações de acontecimentos reais, que o jogador irá interagir. E são essas representações de sociedades do passado que servem de interesse para os historiadores.


Assim, no presente artigo, pretendemos discutir brevemente como a Indústria Cultural atua na produção de narrativas históricas lúdicas, e como essas narrativas transmitem representações e discursos sobre o passado das sociedades em que estão inseridas. Para tal, utilizaremos da metodologia de análise de screenshots de cenas do jogo Valiant Hearts – The Great War (UBISOFT, 2014), objeto das minhas pesquisas a respeito do videogame.


Campos e metodologias


O campo da História vem desde os anos de 1970, abarcando uma diversidade de fontes e vestígios para a construção de seu discurso. A Nova História possibilitou que objetos antes considerados “fantasiosos” ou “fictícios” – como mitos e lendas – fossem incorporados nos estudos da História Cultural, que passou a dialogar com outras áreas das ciências sociais, linguística e da psicologia. O que abriu caminho para o estudo das transmissões mentais e de imaginários – atuando diretamente no campo dos discursos e das representações.


Sendo representações históricas, de maneira nenhuma podemos considerar que os jogos estão “certos” ou “errados” historicamente falando, pois eles são frutos de decisões e escolhas de pessoas que fazem parte de um contexto contemporâneo, e mesmo que a sua produção conte com o apoio de historiadores e uma extensa gama de fontes, o discurso criado sempre sofrerá interferência externa do seu meio.


Desse modo, a História Cultural possibilita que diferentes tipos de objetos sejam analisados e estudados para o entendimento de como o passado é imaginado e construído por nossa sociedade contemporânea. Possibilitando que objetos considerados ficcionais, sejam fontes extremamente ricas para entender a construção do nosso mundo, pois mesmo sendo narrativas com realidades inventadas, ainda são reflexos de um mundo presente.


Por se tratar de um produto de massas, o videogame ainda sofre com preconceitos pela academia (CARREIRO, 2013; BELLO, 2017; PAULA, 2017), pois é considerado apenas como uma “brincadeira”. Porém, a prática de brincar está diretamente ligada com a formação social do homo sapiens, sendo essas também, atitudes que devem ser estudadas e analisadas para o entendimento social e cultural de uma sociedade contemporânea.


Assim, devemos entender que os videogames estão inseridos em uma crescente industrialização de produtos audiovisuais, e que causam grande impacto comercial e cultural, sobretudo entre os jovens (BELLO, 2017, p. 219). Esse é um dos atuais debates da Historiografia, a respeito do Público que consome a História. Não pretendemos adentrar nesse artigo, a respeito da História Pública, mas é importante que o leitor saiba, que a História não está presa apenas nos meios acadêmicos, mas atua diretamente nas análises de divulgações e recepções de diversos conteúdos.


Quando tratamos da metodologia de análise de videogames, podemos encontrar um diálogo com pesquisas dos campos da “narratologia” e “ludologia” (FERREIRA, 2007). De forma que um dos principais nomes que traçaram métodos para análises de jogos é Espen Aarseth, que elaborou um roteiro de análise, que fora adaptado por Diogo Carvalho (2017), para os estudos da História (disponível nas referências para consultas).


Como Marcos Napolitano aborda em seu texto “A história depois do papel”, o ideal quando trabalhamos com o audiovisual, é que seja feita a análise do objeto como um todo. Contudo, devido às limitações do nosso suporte (trabalhos escritos), a utilização dos screenshots de algumas cenas do jogo ainda é a melhor solução, demonstrando resultados surpreendentes sobre o contexto, representações, discursos e narrativas.


Narrativas ficcionais e representações históricas


Valiant Hearts – The Great War, é um jogo lançado em 2014 pela Ubisoft Montpellier (a mesma produtora dos jogos Assassin’s Creed), que tem sua ambientação nos anos da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). Contou com a participação de órgãos governamentais franceses – Mission du Centenaire – para o fornecimento de documentos, vídeos e objetos do conflito.

Objeto recriado que pode ser coletado ao longo da gameplay do jogo.
Figura 1

Nas palavras dos desenvolvedores, a utilização desses arquivos e objetos (figuras 1 e 2) era para “demonstrar a guerra como realmente foi”. Aqui temos a atuação de sujeitos históricos, que estando presentes em seu contexto, consideram que o “real” esteja diretamente ligado a objetos e arquivos do passado, desconsiderando que o passado foi construído por eles, a partir de uma necessidade do presente. E se tratando de um jogo francês, se utilizando de documentos e objetos franceses, conseguimos identificar uma tendência nacionalista em seu discurso.

Hipermídia explicando o contexto de determinada cena do jogo.
Figura 2

Esse discurso nacionalista passou a se evidenciar a partir do destaque que os desenvolvedores deram aos “poilu” – peludos – a denominação dos soldados franceses, que na palavra de um dos desenvolvedores: “eram pessoas comuns enfrentando situações extraordinárias ou mesmo desumanas”. Fora que o jogo serviu para homenagear familiares de pessoas envolvidas na produção.


A Guerra em si, não é explorada da forma “tradicional”, quando falamos em jogos de guerra. Ela serve como plano de fundo para a história fictícia de Emile, um camponês que foi recrutado para lutar no conflito e tem como objetivo salvar seu genro, Karl, de origem alemã, e que foi obrigado a servir para seu país. No decorrer do enredo, Emile encontra Freddy, um afro-estadunidense que se alistou no exército francês para vingar a morte de sua esposa, e Anna, uma enfermeira belga que está a procura de seu pai, um cientista que havia sido capturado pelo antagonista da história, o Barão Von Dorf. O jogo é um puzzle – put and click – onde o objetivo é desvendar os quebra-cabeças em cenários que relembram as trincheiras da frente ocidental ou algumas cidades belgas e francesas, a fim de se avançar na narrativa.


Após essa apresentação, podemos elencar várias perguntas a respeito da simulação do jogo:

Momentos antes do início do conflito, a Guerra ainda não havia começado para o personagem principal.
Figura 3

A primeira é a respeito da ambientação (figuras 3 e 4). O jogo se assemelha à uma História em Quadrinhos, que apresenta paletas de cores diversas ao longo do desenvolvimento da narrativa. Como cores vivas em tons azulados no início do conflito, que podem representar um sentimento de paz a esperança. Bem como cores de tonalidades acinzentadas, trazendo uma sensação de hostilidade, quando os cenários se passam na “Guerra de Trincheiras”.


Mas por que foi escolhido esse tipo de representação para o conflito?

A imagem representa a “Guerra de Trincheiras” e a mudança da palheta de cores.
Figura 4

O jogo foi criado como parte das comemorações e homenagens aos combatentes da Guerra. A não utilização de uma temática “comum” – FPS, com jogadores lutando um contra o outro ou contra um inimigo – contribui para passar uma mensagem pacifista. Para os desenvolvedores, "a escolha por uma História em Quadrinhos serviu para aproximar pessoas novas que nunca haviam tido contato com o conflito", pois cabe destacar, que diferentemente da Segunda Guerra Mundial, a Primeira não possui um apelo comercial tão grande, passando a ser explorada apenas nos anos que antecederam seu centenário, como no caso, o próprio jogo.

Detalhe da bandeira republicana
Figura 5

Contudo, como dito anteriormente, o discurso do jogo tende para um nacionalismo francês. Podemos identificar esse nacionalismo em cenas com a bandeira republicana francesa, bem como os dizeres “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (figuras 4, 5 e 6) – que contrastam com a bandeira inimiga, que não é a do Império Alemão, mas sim uma bandeira que nos remetem aos traços da bandeira prussiana – branca e preta - bem como o brasão de armas do exército prussiano (figura 7), além de que, a representação do antagonista do jogo, Barão Von Dorf, se assemelhar a um oficial alemão, August Von Makensen, conhecido como “o último Hussardo” – alusão à cavalaria prussiana (figura 8).

Brasões republicanos e os dizeres "Liberdade, Igualdade e Fraternidade".
Figura 6

Mas afinal, por que o jogo não representa a Alemanha como inimiga?

Bandeira do antagonista do jogo, com as cores prussianas e que se assemelham com o brasão de armas e inscrições do exército prussiano.
Figura 7

Podemos responder analisando a escrita recente sobre a Primeira Guerra Mundial e o não apontamento de culpados pelo conflito. Apontar para um inimigo considerado instinto (a Prússia), remonta apelos patrióticos – revanchismo francês pela derrota da Guerra Franco-Prussiana (1870-71). Existe um debate acerca desse revanchismo, mas como aborda Marco Stancik, em suas análises de cartões postais franceses e alemães Pré-Grande Guerra, ambos os lados tratavam o “inimigo” de forma estereotipada – situação reforçada no jogo, apresentando os alemães de forma caricata e em algumas situações, ingênuos (figura 9).

Semelhanças entre o antagonista do jogo e um oficial Alemão reincidente da cavalaria prussiana
Figura 8

São as diversas representações presentes em Valiant Hearts – The Great War, que não caberiam no espaço desse texto. Além de que a pesquisa segue sendo realizada, trazendo novas abordagens, como o significado das personagens femininas “Marie” e “Anna”, que fazem alusão à Marianne – famosa pelo quadro de Eugène Delacroix: “A liberdade guiando o povo”. Com esse texto, tentamos demonstrar de que forma os historiadores podem pensar e utilizar o videogame em suas pesquisas, e como os enredos dos jogos atuam na propagação de discursos e representações de imaginários sobre o passado, além de contribuírem para uma pesquisa histórica recente, abordando novas problemáticas.

Representação dos soldados alemães, papeando e bebendo cerveja. Ao fundo a representação da Bandeira do antagonista, já analisada acima.
Figura 9

Referências:

BELLO, Robson Scarassati. História e Videogames: como os jogos eletrônicos podem ser pensados por historiadores (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: 17 https://www.cafehistoria.com.br/historia-e-videogames. Publicado em: 13 nov. 2017. Acesso: 21 de jun. 2018.

CARVALHO, Diogo. História e Videogames: contribuições de Espen Aarseth para o debate metodológico. In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História - contra os preconceitos: história e democracia.

FERREIRA, Emmanoel Martins. Da arte de contar histórias: games, narrativas e interatividade. Salvador: Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais, 2007.

MANOEL JUNIOR, Marcos Antonio. Videogames como mídia de representação histórica: Análise do jogo Valiant Hearts - The Great War (2014). Monografia – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Escola de Educação e Humanidades. Orientador: Prof. Dr. Alexandro Neundorf

NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais - A História depois do Papel in: PINSKY, Carla (orgs.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008

NEVES, Lucas. Cem anos após o Armistício, Primeira Guerra Mundial é revisitada. Folha de São Paulo, Paris, 11 nov. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/cem-anos-apos-o-armisticio-primeira-guerra-mundial-e-revisitada.shtml. Acesso em: 6 maio 2019.

PAULA, Cássio Remus de. O ofício do historiador como pesquisador dos videogames: teorias e métodos

ROIZ, Diogo da Silva; FONSECA, André Dioney. Resenha da obra Testemunha ocular: História e Imagem de Peter Burke. Métis: História e Cultura, v.4, n.8, p. 315-319. Jan/jun 2006.

STANCIK, Marco Antônio. Imagens sentimentais, mensagens belicistas: o imaginário francês em postais pré Grande Guerra (1914-1918). Revista Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, 2013. Disponível em: http://portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/about/contact. Acesso em: 6 maio 2019.

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