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POPOL VUH E O MITO DE CRIAÇÃO MAIA: Ficção ou espelho da realidade?

  • Foto do escritor: rayta35
    rayta35
  • 18 de jul. de 2020
  • 6 min de leitura


O Popol Vuh é o livro sagrado Maia. Nele está contido boa parte da cosmogonia da América Central e altiplano mexicano e é considerado um dos principais materiais de estudos da cultura maia, no que se refere principalmente aos estudos das narrativas originárias e processo de atribuição dos sentidos, força vital e função dentro dessas sociedades. Assim, o presente artigo se propõe fazer uma breve análise do Popol Vuh, entendendo que a narrativa se comporta como uma representação do real, apesar de ser um universo ficcionalizado e modificado ao longo do tempo.

Dotado de grandes controvérsias quanto a sua legitimidade narrativa, o Popol Vuh, ou “livro dos conselhos” como é conhecido, é produto de uma releitura de nativos que transcreveram o livro sagrado, escrito originariamente em linguagem hieroglífica maia, e depois transcrita para o “nahualt”- linguagem do altiplano mexicano, porém, em alfabeto latino. Isso devido ao fato de que boa parte da cultura maia já estava em processo de aculturação e assimilação. Assim, esses “escribas” estavam imbuídos de um pensamento cristão, o que influenciou diretamente na escrita do livro sagrado.


Outro fator muito importante na construção do Popol Vuh é que até a transcrição, a narrativa foi se conservando por meio da história oral, pois, com o processo de conquista, a maioria esmagadora dos Códices foram destruídos na Inquisição das Américas, e muito da cultura maia acabou se perdendo, restando apenas quatro códices pré-colombianos e milhares pós-conquista.


É muito difícil afirmar quem o escreveu, porém, segundo Miguel León-Portilla (2012), na obra: "Códices: os antigos livros do Novo Mundo", acredita-se que a autoria compete a vários autores nativos cristianizados. O importante é que a obra sobreviveu às adversidades do tempo, ficando perdida por séculos em uma biblioteca de uma igreja na Guatemala, vindo à tona somente no século XVIII.

O MITO DE CRIAÇÃO– O Popol Vuh é divido em duas partes: Los Abuelos (Os Avós) e Los Magos (Os Mágicos).

A primeira parte, a qual será o foco aqui, conta o “mito de criação” maia. Vale a pena ressaltar que boa parte das metáforas apresentadas na descrição se parecem em muitos aspectos com as narrativas do Gênesis, o “mito de criação” da Bíblia cristã, o que reforça a interferência do cristianismo sobre as populações ameríndias no período pós conquista. Como percebemos nesse trecho a seguir, versão de Emílio Abreu Gómez (2009):

Não havia nem gente, nem animais, nem árvores, nem pedras, nem nada. Tudo era um terreno desolado e sem limites. Acima das planícies o espaço se fazia imóvel; de modo que, sobre o caos descansava a imensidão do mar. Nada estava junto e nem ocupado. O que estava embaixo não tinha semelhança com o que estava em cima. Nenhuma coisa se via de pé. Só se sentia a surda tranquilidade das águas, que pareciam cair em um abismo. E no silêncio das trevas viviam os deuses que se dizem: Tepeu, Gucumatz e HuraKán, cujos nomes guardavam os segredos da criação, da existência e da morte, da terra e dos seres que lá habitam” (tradução: Ray Alves).

Ainda nessa parte, segue na narrativa, as tentativas dos deuses em criar a “vida”. Primeiramente, os deuses criaram os animais, legando a eles a função de “servidão” para com os seres que viriam depois. É de extrema importância que entendamos aqui a função que desempenha o mito. Ao legar aos animais os seus “destinos”, os deuses podem ser explicados como a ordem semiótica dessa sociedade, ou seja, eles representam a atribuição dos sentidos, que foram construídos ao longo do tempo nessas comunidades. Os deuses representam o elo entre passado, presente, e futuro.


Depois da criação dos animais, os deuses deram-lhe suas respectivas “vozes”, para que estes dissessem seus nomes e soubessem quem os dera a vida. Porém os animais não o fizeram, e os deuses desolados e enfurecidos condenaram os animais a se esconderem e comer uns aos outros.


Esse trecho é muito importante, pois revela como as sociedades ameríndias justificam e entendem a cadeia alimentar e o processo de seleção natural, tal como a função da natureza, esta, como dádiva divina, porém um ambiente extremamente hostil.

Depois vieram os seres feitos do barro, porém estes não se mantinham de pé e nem possuíam consciência para falar o nome dos deuses e também foram descartados. Os terceiros a serem criados foram feitos de madeira, e se pareciam muito com seres humanos, porém não disseram os nomes dos deuses, apesar de falarem e se reproduzirem, de modo que, ofendidos, os deuses os destruíram com cinzas e com uma inundação.


Nesta passagem o significado da destruição pelas cinzas pode estar relacionado aos desastres naturais e atividades sísmicas, que foi um fator importante nos processos migratórios e queda de boa parte das civilizações mesoamericanas, tal como a inundação pode ter sido uma interferência cristã, o que revela mais ainda a representação do real por meio dos mitos, como ressalta Malinowski (1995):

[…] apesar das modificações sofridas no decorrer dos tempos, os mitos dos “primitivos” ainda refletem um estado primordial. Trata-se, ademais, de sociedades onde os mitos ainda estão vivos, onde fundamentam e justificam todo o comportamento e Vida a atividade do homem.

Novos seres foram feitos, dessa vez de Junco, porém, assim como os outros, não adoraram e disseram os nomes dos deuses, e por consequência foram destruídos por pássaros que arrancaram seus olhos e felinos que destroçaram seus corpos, porém os que sobraram foram acusados pelos cães que eram doceis, pelas pedras que serviam para moer o milho e pela madeira que os ofereciam fogo, de iniquidade. Ouvindo tantas acusações, esses seres juntaram-se em bandos e subiram em árvores. Os que não caíram ou não se quebraram converteram-se em macacos e foram condenados a servir de alimentos para os humanos.


E por fim, os deuses criaram a partir do milho, os seres humanos, estes se fizeram tão amáveis e inteligentes e submissos, a ponto de poder dizer-lhes os seus nomes e adorá-los, que por consequência despertou imensa felicidade dos deuses por sua criação.


Desse modo, se encerra a narrativa do mito de criação do Popol Vuh, porém a história se estende na primeira parte, descrevendo de maneira mítica e ficcionalizada, os processos de povoação e até mesmo o processo de sedentarização dos povos mesoamericanos, tal como a mudança de vida nas cavernas para o modo de vida sedentária às margens dos rios. Assim, vale dizer que:

[…] é importante frisar, desde já, um fato que nos parece essencial: o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma “história verdadeira”, porque sempre se refere a realidades. O mito cosmogônico é “verdadeiro” porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente “verdadeiro” porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante. (MALINOWSKI, 1995)

CONSIDERAÇÕES- O Popol Vuh segue ainda a segunda parte (Los Magos), porém não será objeto de análise aqui, entretanto, vale dizer que, além de muito divertido, trata o modo de vida dessas sociedades de modo muito profundo, dotado de metáforas e simbologias, que atuam diretamente no campo do real. A segunda parte narra a epopeia dos gêmeos Hunapú e Ixbalanqué, que desceram ao Xibalba, o inframundo mesoamericano, que mais tarde foi interpretado pelos cristãos como uma representação do "Inferno". Lá, os gêmeos desafiam os deuses do Xibalba, num jogo de bola tipicamente Maia. Vale muito a pena conferir.

A vista disso, no que se refere a interpretação e análise do Popol Vuh, pode-se dizer que, a forma com que os mesoamericanos encontraram para representar a sua sociedade, foi por meio dos mitos. Estes funcionam como uma espécie de “espelho” da realidade, ou seja, não se trata apenas de um relato ficcionalizado, e sim uma representação do modo de vida por meio de alegorias. Vale dizer também que, os deuses dentro da narrativa representam a relação que esses indivíduos desenvolveram com a “memória”, tendo em vista a necessidade de serem lembrados e adorados e eternizados.


A literatura Maia é extremamente complexa, retrata a relação íntima desses povos com a história e a ficção, como um patrimônio hereditário, que se transforma ao longo do tempo, mas não se abdica das suas origens, para representar o universo, ao mesmo tempo tão fantástico quanto real, e utilizar estes elementos como critérios de legitimação cultural.

REFERÊNCIAS:



CARVALHO, J. P. A. O Popol Vuh e o não humano entre os maias das terras altas. In: BERTAZONI, C.; SANTOS, E.; FRANÇA, L. (Org.). História e arqueologia da América indígena: tempos pré-colombianos e coloniais. Florianópolis: Editora UFSC, 2017. pg. 229-241.

GÓMEZ, E. A. Popol Vuh: Antiguas Leyendas del Quiché. Fundo de Cultura Econômica: México, 2009.

LANCIANI, G. O maravilhoso como critério de diferenciação entre sistemas culturais. In: REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. América, Américas. Órgão da Associação Nacional dos Professores Universitários de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 11, nº21, set. 90/ fev. 91, p.21-26.

LEON-PORTILLA, M. Códices: os antigos livros do novo mundo. Editora FSC: Florianópolis, 2012.

MALINOWSKI, B. Myth in Primitive Psychology (1926); reproduzido no volume Magic, Science and Religion, Nova York, 1955, págs. 101-108.

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