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WAKANDA FOREVER!

  • Foto do escritor: Marcos A. Manoel Junior
    Marcos A. Manoel Junior
  • 29 de ago. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 1 de jun. de 2023

O texto de hoje seria algo relacionado com a História Pública, tendo em vista a recente promulgação da regulamentação da profissão de Historiador. Contudo, hoje pela manhã todos acordamos com a triste notícia da morte, por câncer, do ator Chadwick Boseman, conhecido por interpretar o herói Pantera Negra nos filmes do Universo Marvel. Confesso que nunca fui fã assíduo dos filmes da Marvel, pois considero que são narrativas repetitivas e que ganham o público por um humor caricato – e exacerbado em alguns momentos. Mas alguns dos filmes me chamaram bastante atenção, sendo um deles o próprio Pantera Negra.

A morte do ator ocorreu no dia 28 de agosto, data de aniversário de um importante evento na luta contra a segregação racial nos Estados Unidos: a Marcha sobre Washington pelo trabalho e liberdade, liderada por Martin Luther King Jr., em 1963. Vale lembrar que os Estados Unidos – embora se vendam como o país da liberdade e da democracia – nunca trataram com igualdade latinos (isso inclui brasileiros), hispânicos e negros, vide os diversos protestos que têm assistido há três meses.


Não pretendo, neste artigo, falar de questões teóricas mais aprofundadas, mas quero deixar claro que os termos “representação” e “representatividade” utilizados neste texto possuem significados diferentes. A primeira, no sentido de “representações sociais”, conceito amplamente debatido nas Ciências Sociais, diz respeito à forma como o contexto externo aparece dentro de uma narrativa, formando um discurso. Essa representação é criada por meio de imaginários que ressignificam determinadas imagens de uma sociedade – ou num sentido direto, como uma sociedade se enxerga. No caso do Pantera Negra, o contexto de criação do personagem remete à luta contra a segregação racial que os Estados Unidos passavam nos anos de 1960.


O segundo conceito – representatividade – diz respeito a como um grupo é apresentado, ou como os interesses de um grupo é abordado. Geralmente essa representatividade é tida por meio de um personagem. No caso, o próprio Pantera Negra.


Assim, o presente artigo é um comentário crítico. Não espero que alguém concorde 100% comigo, mas espero causar certa reflexão. A comoção pela morte do ator foi maior que o debate que ocorreu há três meses por conta dos protestos contra o racismo estrutural existente nos Estados Unidos. Comoção igual não existe no Brasil, país onde negros têm 2,7 vezes mais chances de ser assassinados do que brancos. Será que falta no Brasil um Pantera Negra para que o negro tenha alguma valorização?


QUESTÕES RACIAIS NOS ESTADOS UNIDOS


A segregação racial nos Estados Unidos, remonta os anos posteriores ao fim da Guerra de Secessão (1861 - 1865), travada entre os Estados Unidos (estados do norte do país, conhecidos como a União) contra os estados Confederados do Sul. A região sul dos Estados Unidos, sempre teve uma característica agrária, as grandes plantations de algodão, dependiam da mão-de-obra escrava. Já os estados do norte viviam os ares da Revolução Industrial, e não dependiam mais da escravidão para seus empreendimentos comerciais. Com a eleição de Abraham Lincoln e seu discurso pró-abolicionista, os estados ao sul (começando pela Virginia), declararam independência. A guerra que seguiu, durou quatro anos e contou com cerca de 1 milhão de mortos (entre militares e civis). Teve como resultados a reunificação dos Estados Unidos e a emancipação dos escravos. Porém, isso não significou uma liberdade social para os negros. Luther King Jr., em seu discurso destaca que:

{...} cem anos mais tarde, o negro ainda não está livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro ainda é duramente tolhida pelas algemas da segregação e os grilhões da discriminação. Cem anos mais tarde, o negro habita uma ilha solitária de pobreza, em meio ao vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro continua a mofar nos cantos da sociedade americana, como exilado em sua própria terra. Então viemos aqui hoje para dramatizar uma situação hedionda.

A fala de Luther King Jr. está diretamente atrelada às Leis de Jim Crow, que foram promulgadas primeiramente nos estados do sul e anos mais tarde em outros estados do país. As leis significavam a separação entre brancos e negros. Essa segregação se estendia em todos os aspectos da sociedade. Brancos e Negros não podiam frequentar os mesmos espaços, sendo os espaços destinados para negros, bem inferiores aos frequentados por brancos, como no caso das escolas e bibliotecas (quase inexistentes).


O resultado da manifestação de Luther King Jr., em 1963, foi a promulgação da Lei de Direitos Civis, em 1964, que acabava de vez com a segregação racial, e um ano depois, dava direito ao voto para os cidadãos negros. Contudo, nada disso impediu que os negros continuassem segregados e fossem vistos como criminosos.


Essa continuidade de violência causou mais revolta entre a população negra, levando a criação de movimentos e partidos políticos voltados à proteção e a garantias de direitos de pessoas de cor.


O movimento dos Panteras Negras foi criado em 1966 como forma de proteção de moradores que moravam em bairros onde a maioria da população era negra, e que sofriam constantes ataques e repressão policial. Buscavam a emancipação e o direito de autodefesa dos negros, pois, o povo negro estava cansado de tanta humilhação. Os Panteras Negras assumiram uma plataforma política revolucionária com ideais marxistas e defendiam a autogestão da sociedade. Criaram programas sociais para atender a população mais pobre dos Estados Unidos, sobretudo negros e latinos. Inicialmente o grupo pregava a luta armada para combater a repressão e utilizavam como símbolo a mão direita fechada e erguida para o alto – ainda hoje utilizada por movimentos que buscam igualdade de direitos para as pessoas negras. Logo o movimento foi tido como “a maior ameaça à segurança interna norte-americana” e o FBI passou a intervir até o fim do movimento na década de 1980. Não interessava ao governo que gente negra tivesse igualdade, muito menos destaque. Embora semelhantes no nome, o movimento dos Panteras Negras não serviu de inspiração para a criação do personagem.



A CRIAÇÃO DO PERSONAGEM

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os super-heróis haviam perdido espaço e popularidade nas revistas em quadrinhos. Isso passou a mudar com a chamada Era de Prata das HQ’s.


Na década de 1960 os heróis sofreram por uma reformulação em seu estilo, abarcando enredos perpassados pela ficção científica e representações mais diretas de suas nações – sobretudo a guerra-fria. Os grupos de heróis passaram a existir, como a Liga da Justiça, os Vingadores e o Quarteto Fantástico. Muitos deles tiveram novas histórias de origem e outros personagens foram criados. Os novos heróis passavam a ter uma complexidade em seus enredos, que os traziam para perto do grande público, como o Homem-Aranha e claro, o Pantera Negra.


Os movimentos sociais serviram de inspiração para que Stan Lee e Jack Kirby criassem o primeiro super-herói negro dos quadrinhos. Um herói africano, que tinha como figura central o Rei de Wakanda T’Challa. A primeira aparição do Pantera foi na revista #52 do Quarteto Fantástico, em 1966.


Possivelmente a inspiração para o nome vem de um antigo movimento que já utilizava o nome e de um batalhão de segregados que lutaram na Segunda Guerra Mundial.


A história de Pantera Negra se passa em Wakanda, um país com características tribais, mas que é altamente tecnológica. T’Challa é um grande guerreiro que assume o manto do Pantera Negra após a morte de seu pai. Em Wakanda, é possível encontrar um metal alienígena – vibranium – que chegou na região por meio de um meteoro. O vibranium é a fonte de toda a tecnologia do país, que se mantém escondida do restante do mundo, para que seja protegida.


Wakanda representa as riquezas e o valor da África. Para o mundo ocidental, o imaginário existente sobre o continente, não passa da visão de um lugar pobre e abandonado. E essa representação é amplamente abordada nas mídias e no cinema. Contudo, foi altamente explorado pelos europeus entre os séculos XV e XX. Os europeus exploraram o continente, removeram a sua riqueza, capturaram pessoas e as transformaram em escravos na América. Não respeitaram suas culturas e as suas organizações sociais.

Criaram um imaginário ocidental de que os africanos que vieram para a América eram desprovidos de religião e de qualquer tipo de cultura. Até hoje vemos discriminação com religiões de matrizes africanas, justificadas pelo pressuposto de que a “cristianização” é a verdadeira salvação. Os europeus, movidos pela ideia de superioridade de raças no século XIX, promoveram massacres e são responsáveis diretos pelos problemas sociais que o continente africano passa nos dias de hoje. Os wakandens sabiam que se falassem sobre o vibranium, passariam pelos mesmos problemas que seus irmãos passaram – claro que, nos moldes da ficção, a História serve para dar fundamento ao enredo.


Pantera Negra significou a representatividade do negro em um país racista.

O NEGRO E O CINEMA NORTE-AMERICANO


Se analisarmos bem a fundo, Cris Evans, Chris Hemsworth e Tom Hiddleston – os heróis (e o vilão) mais famosos do MCU – são galãs. Oras, são brancos de olhos verdes. Em contrapartida, Chadwick Boseman nunca recebeu essa alcunha.


O racismo estrutural existente em nossa sociedade, nos faz acreditar que apenas pessoas caucasianas com traços europeus recebem status de estrela. Pode-se argumentar que, “existem muitos atores negros que são estrelas tal qual os brancos!”, pois é, existe, não nego. Mas o fato é que, se analisarmos a história do cinema hollywoodiano, são poucos os atores negros que conquistaram tal status.


Se lembram do #OscarsoWhite? Foi bem recente, em 2016. Pois bem, o cinema norte-americano segue tendências de representar outras culturas como inferiores e estereotipadas, e quando um filme com personagens negros recebe alguma indicação, nunca é o favorito ou ganha algum prêmio. Se lembram de 12 anos de Escravidão? Ganhou, mas ninguém lembra, não teve uma repercussão tão grande quanto o filme meia boca que o DiCaprio se arrasta na neve fugindo, vejam só, de índios. Esse foi aclamado!


Infelizmente a cultura norte-americana dita a regra do nosso gosto sobre cinema. Infelizmente a cultura norte-americana diz aquilo que devemos clamar ou assistir. Oras, não é de se estranhar que para a doutrina norte-americana, “a terra pertence aos escolhidos”. A doutrina norte-americana é segregacionista desde os pais fundadores. A doutrina norte-americana é armamentista e genocida. A doutrina norte-americana é baseada no massacre. Far West e o genocídio indígena é lembrado todos os dias nos pronunciamentos de Donald Trump.

Pantera Negra, mesmo dentro do MCU, ainda é coadjuvante. Cris Evans e Robert Downey Jr., encerraram suas participações com Vingadores: Ultimato. E quando o personagem de Anthony Mackie, o Falcão, foi anunciado como o sucessor do Capitão América houve um hate enorme na internet. “O Capitão América ser interpretado por um ator negro? Tá maluco?”, ou quando a Marvel anunciou que a continuidade do MCU iria ser em torno do personagem de Chadwick Boseman, a reação foi simplesmente de “ok... não é dos originais, mas tudo bem”.


“MAS O PANTERA NEGRA FOI INDICADO AO OSCAR!”


Foi. Mas faz parte do contexto dos filmezinhos da Marvel com humor caricato e exacerbado. Pantera Negra, para mim, é o melhor filme da Marvel. Possui uma história rica e mostra a representatividade negra. Não merecia o Oscar, mas sua indicação já foi um grande ganho para a comunidade negra – tão mal representada e abordada no cinema.

Ao apresentar a cultura africana, Pantera Negra se tornou a voz dos excluídos. Conseguem dizer outro filme em que a África foi mostrada sem envolver terrorismo, comércio ilegal de joias ou turistas perdidos no meio do território de leões? Difícil. Mas Pantera Negra consegue mostrar uma África sem estereótipos. Possui todo o corpo de produção formado por pessoas negras, quebra com um paradigma da indústria em que filmes sobre negros são abordados e filmados por diretores brancos (pouco comuns em Hollywood). Abre a possibilidade para que jovens negros, que sofrem com a violência e a repressão policial, consigam ver um semelhante fazendo o mesmo que personagens brancos fazem há anos.

WAKANDA FOREVER!

Boseman morreu de câncer. Morreu no dia 28 de agosto, 56 anos depois de Luther King Jr. ter feito seu discurso no Lincoln Memorial, em meio a uma série de protestos contra a repressão e o abuso policial, que continuam existindo nos Estados Unidos. Morreu sendo o principal ator negro da sua geração, por representar um personagem coadjuvante.

Luther King Jr. tinha um sonho. Tinha um sonho de ver negros e brancos convivendo em paz, tinha um sonho de ver o povo negro livre das garras da segregação. Mas não é isso o que vimos nos últimos três meses.

A luta pela igualdade racial deve ser maior do que apenas fazer um post lamentando a morte de Boseman. A luta pela igualdade racial não deve aparecer apenas quando um norte-americano é brutalmente assassinado pela polícia. No Brasil a morte de negros cresce 11,5% por ano e não se vê uma comoção igual.

Quando uma novela em que o enredo se passa no início da favelização do Rio de Janeiro e com o elenco majoritariamente negro (Lado a Lado) é rejeitada, mas um filme com símbolo Marvel é aclamado, conseguimos observar que a culturalização midiática do negro é só válida quando serve como narrativa secundária.

Wakanda Forever!

REFERÊNCIAS:

MAGNOLI, Demétrio (org.). História das guerras/ Demétrio Magnoli, organizador. 5. ed., 2º reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015.

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